O SINDTAE compartilha texto de Allan Seki, da UNICAMP, demonstrativo de como os ataques a universidades públicas fazem parte de um projeto de desmonte da educação:
Cortes no Orçamento e mensalidades nas Universidades públicas: novas frentes de ataque ao caráter público das Universidades
Allan Seki - UNICAMP.
Duas notícias sobre as universidades correram o país nas últimas semanas. A primeira foi a entrada na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 206/2019 para alterar o artigo nº 206 da Constituição Federal de 1988 no que diz respeito ao direito de “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”. Propostas como esta têm sido corriqueiras no Congresso Nacional, com objetivo de estabelecer as bases jurídicas para permitir a cobrança de mensalidades nas universidades públicas. Exemplo disso, foi o julgamento do Recurso Extraordinário 597.854, de 26 de abril, de 2017 que sedimentou o entendimento para admitir a cobrança de taxas e mensalidades nos cursos de graduação latu senso nas IES públicas. Essa foi uma derrota importante, pois abriu espaço para a consolidação de extensões dessa decisão para outras atividades de ensino, pesquisa e extensão, além de dar maior fôlego aos anseios privatistas para mudanças no texto constitucional atingindo o cerne das universidades: os cursos de graduação.
Não podemos esquecer que propostas como a PEC 206/2019 apoiam-se em duas concepções ideológicas sobre a universidade brasileira: 1) a de que a maioria dos estudantes matriculados nas universidades públicas é proveniente de escolas privadas e 2) que a maioria destes é oriunda de famílias de alta renda e que poderiam pagar mensalidades para, inclusive, colaborar no esforço de financiamento das políticas de inclusão.
Dados da Associação Nacional de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior – Andifes (ANDIFES, 2018), colaboram para mostrar que a realidade é diversa. Em primeiro lugar, em 1996, 54,96% dos estudantes matriculados nas Instituições Federais de Educação Superior (IFES) eram provenientes de escolas privadas, enquanto 45,04% eram oriundos de escolas públicas. Em 2014, contudo, esse dado demonstrou uma reconfiguração substantiva, com apenas 35,98% de estudantes oriundos de escolas particulares (e, portanto, 64,02% de escolas públicas). Em 2018, a situação persiste com 35,3% do alunado proveniente de privadas e 64,7% das públicas. Mostra-se, portanto, flagrantemente dos dados que se trata de uma mentira contada muitas vezes na imprensa e nos discursos de agentes políticos. Mentiras que precisam ser vistas no quadro geral de achincalhamento da universidade pública perpetrado, no Governo Jair Bolsonaro (2018-2022) pelo próprio Presidente e seus Ministros da Educação; e, ainda, no quadro geral de reprodução de concepções falseadoras como esta pelos Aparelhos Privados de Hegemonia dos grandes proprietários de capitais do ensino superior privado, que são os maiores beneficiários da cobrança de mensalidades nas IES públicas brasileiras.
A gratuidade é um tema que vem sendo atacado com ferocidade pelos APHs, pois representam uma barreira mercadológica para a expansão financeirizada realizada por eles nos últimos 26 anos. Nas críticas da Associação Brasileira de Mentenedoras do Ensino Superior – ABMES (2005):
Uma universidade pública que recebe orçamentos do erário e não cobra dos alunos tem a possibilidade de oferecer cursos em praticamente todas as direções. Um dos seus papéis relevantes é fazer com que o ensino público ocupe espaços onde o setor privado não opera espontaneamente (SCHWARTZMAN; CASTRO, 2005, p. 13).
Não pode existir dúvidas no campo daqueles que defendem a educação pública que são esses os interesses em jogo sobre a gratuidade: em primeiro lugar, os capitais de ensino consideram concorrência desleal do Estado com a livre iniciativa a ausência de cobrança de mensalidades das IES por ele mantidas. Em segundo lugar, o projeto dos empresários de ensino superior é tornar a universidade pública, no limite, uma função acessória em relação aos cursos e regiões que eles não queiram ou não possam, temporariamente, explorar.
Um segundo aspecto diz respeito ao argumento de que a maioria dos estudantes das IES públicas são de famílias ricas, que poderiam pagar pelas mensalidades sem que isso comprometesse a renda familiar. A PEC 206/2019 afirma que, no Brasil
A gratuidade generalizada, que não considera a renda, gera distorções gravíssimas, fazendo com que os estudantes ricos - que obviamente tiveram uma formação mais sólida na educação básica - ocupem as vagas disponíveis no vestibular em detrimento da população mais carente, justamente a que mais precisa da formação superior, para mudar sua história de vida. [...] O gasto público nessas universidades é desigual e favorece os mais ricos
Além do evidente desprezo pelo trabalho realizado na educação básica pública, que, de acordo com os dados do Cens Escolar de 2019, forma 87,5% dos alunos matriculados no Ensino Médio, ou seja, mais de 6,5 milhões de jovens – num universo de 7,46 milhões; o aparente compromisso social também falsifica a caracterização buscando aproveitar-se de um senso comum vulgar. Os dados da ANDIFES, mais uma vez, demonstram que a realidade é outra: em 2018, 70,15% de todos os estudantes matriculados nas IFES eram oriundos de famílias que ganham até 1,5 salários mínimos (ANDIFES, 2018). Inverdades como essa se perpetuam aproveitando-se de caracterizações que foram realizadas décadas antes, resultado do tipo específico de expansão seletiva das instituições públicas durante o regime empresarial-militar de 1964. A realidade da universidade pública brasileira, apesar dos diversos entraves criados pelos governos, mudou muito. Em 2018, apenas 3,1% dos estudantes das IFES eram de famílias que tinham renda mensal superior a 20 salários mínimos.
O ocultamento dos dados objetivos é um dos mecanismos movidos de forma articulada e a PEC 206/2019 é apenas mais uma engrenagem. É preciso lembrar que no Programa Future-se, em 2019, o governo Bolsonaro havia aventado a possibilidade que instaurar cobranças de taxas acadêmicas o que foi retirado do projeto poucas horas antes de sua divulgação, dada a possibilidade de esse objetivo atravancar a adesão ao programa – que foi vencido pela força dos movimentos sindicais e estudantis, mas que persiste como ideia-força em diversas propostas em andamento.
Vale lembrar que o Banco Mundial propôs, no período do Governo Michel Temer (2016-2018), em seu documento “Um ajuste justo: propostas para aumentar eficiência e equidade do gasto público no Brasil” (BANCO MUNDIAL, 2017) que o gasto com o ensino superior público no Brasil seria muito regressivo e que isso indicaria “a necessidade de introduzir o pagamento de mensalidades em universidades públicas para as famílias mais ricas”. E, além disso, diagnosticava que:
Uma vez que diplomas universitários geram altos retornos pessoais (em termos de salários mais altos), a maioria dos países cobra pelo ensino fornecido em universidades públicas e oferece empréstimos públicos que podem ser pagos com os salários futuros dos estudantes. O Brasil já fornece esse tipo de financiamento para que estudantes possam frequentar universidades particulares no âmbito do Programa FIES. Não existe um motivo claro que impeça a adoção do mesmo modelo para as universidades públicas. A extensão do FIES às universidades federais poderia ser combinada ao fornecimento de bolsas de estudo gratuitas a estudantes dos 40% mais pobres da população.
A aposta no Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) como o principal programa bordado pelo banco não é casual. O FIES foi, desde sua implantação, em 1999, um dos pilares da financeirização do ensino superior no Brasil, junto com o Programa Universidade Para Todos (PROUNI) e o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies). A passagem pelos dados orçamentários do FIES (Figura 1) e com os gastos tributários estimados do Prouni (Figura 2) permitem verificar a importância do volume de recursos que esses programas transferiram para os fundos de acumulação de capitais e, portanto, porque sua extensão às IES públicas com a quebra da gratuidade é uma questão de fundo estratégico na financeirização da educação superior brasileira.
Figura 1 - Evolução das despesas orçamentárias do FIES no orçamento público federal – Brasil, 2000-2017 (em bilhões de R$)
Fonte: Elaboração do autor (SEKI, 2021) com dados do Relatório do FIES (2000-2017). Nota: Os dados correspondentes ao ano de 2019 foram contabilizados apenas até agosto. Dados em valores de novembro de 2019, corrigidos pelo IPCA.
Figura 2 - Estimativa de gastos tributários com o Prouni – Brasil, 2006-2019 (em bilhões de R$)
Fonte: Elaboração do autor (SEKI, 2021) com dados de estimativas de gastos tributários elaborados pela Receita Federal. Nota: Os dados correspondentes ao ano de 2019 foram contabilizados apenas até agosto. Dados em valores de novembro de 2019, corrigidos pelo IPCA.
Os dados apresentados também permitem examinar como mesmo após 2016, com a implementação da Emenda Constitucional n. 95, que estabelece o ajuste fiscal e o teto de gastos para as despesas com as principais políticas sociais, as despesas estimadas com o FIES e o Prouni seguiram em crescimento. Isso demonstra o comprometimento do Estado com as transferências de fundos públicos aos capitais de ensino superior. Enquanto, em comparação com os dados orçamentários das despesas com as IFES, a situação é muito diferente.
Figura 3 – Evolução do Orçamento Federal com as IFES – Brasil, 2000-2022
Fonte: Dados extraídos do Sistema de Informações do Orçamento Federal – SIOF.
A partir de 2016, interrompe-se o ciclo de expansão de vagas e matrículas no Ensino Superior Federal com o congelamento de recursos pelo teto das despesas daquele ano. O efeito nos dados orçamentários é imediato, mas pode ser observado na Figura 4, quando comparamos o orçamento destinado a cada dotação.
Figura 4 – Evolução do Orçamento Federal com as IFES por tipo de dotação – Brasil, 2000-2022
Fonte: Dados extraídos do Sistema de Informações do Orçamento Federal – SIOF.
Fica explícito ao tornar o orçamento uma razão de 100% que os cortes nas IFES foram aplicados sobretudo nas despesas com pessoal, custeio e, sobretudo, investimentos. Os efeitos dessas medidas é o congelamento da expansão que vinha sendo realizada nas IFES, bem como a deterioração das infraestrutura instalada, o que se reflete nos episódios de flagrante insalubridade de salas de aulas e laboratórios verificados em várias universidades do país e, infelizmente, também nos incêndios ocorridos nos últimos anos: Prédio da Reitoria da UFRJ (2016), nas duas alas da Moradia Estudantil da UFRJ (2017), tragédia do Museu Nacional (2018), biblioteca da UFPE (2018), museu da UFMG (2020), CFH-UFSC (2022).
No caso da UFFS, a situação segue o curso do orçamento das IFES, com cortes significativos nas despesas de investimentos, que para uma universidade nova e multicampi representa um entrave dramático e com graves consequências.
Figura 5 – Evolução do Orçamento Federal com a UFFS– Brasil, 2000-2022
Fonte: Dados extraídos do Sistema de Informações do Orçamento Federal – SIOF.
Figura 6 – Evolução do Orçamento Federal com a UFFS por tipo de dotação – Brasil, 2000-2022
Fonte: Dados extraídos do Sistema de Informações do Orçamento Federal – SIOF.
A leitura desses dados se torna ainda mais alarmante quando tomados pela segunda notícia que agitou aqueles que defendem as universidades públicas, o anúncio de um corte de R$ 3,2 bilhões no orçamento do Ministério da Educação (MEC) e de R$ 2,9 bilhões no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Esse corte representa um bloqueio linear de 14,5% no orçamento destinado às instituições federais de educação que serão sentidos imediatamente, visto que a maior parte dessas instituições ainda arca com os custos de adequação dos espaços físicos e das políticas de permanência estudantis para as atividades presenciais após o período de ensino remoto em razão da Covid-19.
Além disso, esses cortes são anunciados em uma série de perdas orçamentárias sofridas pelas IFES desde 2014. Desde então, o orçamento dessas instituições está totalmente incompatível com o nível de expansão que vinha sendo realizado e com os custos crescentes com a infraestrutura já instalada para as salas de aula, as políticas de permanência estudantil e os laboratórios de pesquisa.
Esses cortes precisam ser vistos num quadro mais amplo, das disputas aqui mencionadas que tem como um de seus elementos arrestantes os interesses dos capitais de ensino como a Cogna (com mais 870 mil estudantes matriculados), Estácio de Sá (436 mil), Unip (403 mil), Laureate (246 mil) e Ser Educacional (137 mil). Longe de serem pequenas faculdades e universidades, esses verdadeiros oligopólios juntos concentram hoje mais alunos do que todas as instituições públicas brasileiras e alimentam-se, em larga medida, das transferências de fundos públicos que poderiam financiar as atividades e a expansão das IFES em todo o Brasil.
Vale mencionar que em 2020, durante a discussão sobre o Orçamento Federal de 2021, o governo anunciou no dia 10 de agosto um corte de 18,2% linear para as universidades federais, o que representava recursos equivalentes a 1 bilhão de reais, aproximadamente. Não obstante, no dia 11 de agosto, apenas um dia após o anúncio dos cortes, a Comissão de Educação do Senado Federal colocava em pauta um projeto de auxílio às IES privadas cujo custo era estimado em transferências de R$ 16 bilhões dos fundos constitucionais à título de socorro em razão da pandemia do Covid-19, além de linhas de crédito subsidiados no montante de R$ 40 bilhões. Fatos da vida nacional como este deixam às vistas que toda discussão orçamentária envolve necessariamente sua localização em uma disputa não apenas de recursos, mas de projeto de educação superior para o país.
Referências:
ANDIFES. V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos(as) graduandos(as) – 2018. 2018. Disponível em: https://bit.ly/3MBJYb7. Acesso em: 6 jun. 2022.
BANCO MUNDIAL. Um Ajuste Justo - Análise da Eficiência e Equidade do Gasto Público no Brasil. 2017. Disponível em: https://bit.ly/3Q2J2z8. Acesso em: 6 jun. 2022.
SCHWARTZMAN, S.M CASTRO, C. M. A nova reforma do mec: mais polimento, mesmas ideias. Revista da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior, Brasília, v. 23, n. 35, 2005.
SEKI, A. O capital financeiro no Ensino Superior brasileiro (1990-2018). Florianópolis: Editoria Em Debate/UFSC, 2021. Disponível em: https://bit.ly/3Kybmpc. Acesso em: : 6 jun. 2022.